A menina

A Menina




Foi numa gostosa manhã de sexta-feira, de 23 de dezembro de 2000, por volta de seis e trinta da manhã, o sol tinha acabado de nascer, quando a bela mocinha sentou-se ao meu lado no ponto de ônibus. Não sei dizer de onde ela surgiu, pode ser que de alguma comércio, esperando sua mãe enquanto ela fazia as compras pro café da manhã. Ou Talvez morasse ali por perto.

Sorri, tentei ser gentil sem assustá-la.

- Olá, mocinha. Bom dia – disse em tom amigável.

A resposta veio em forma de um estonteante sorriso. Ela aparentava ter uns 4 ou, talvez, 5 anos – não mais que isso. Vestia um vestido cheio de flores, assim como minha avó materna (minha avó era do tempo que toda mulher devia usar vestido, era coisa de mulher séria - casada. E naquele tempo, as estampas floridas eram a moda). Era bonitinho nela, parecia que vestia um pequeno jardim florido. Os sapatos combinavam com o vestido, tinha o mesmo tom de branco, com uma fivela levemente azulada prendendo os pés. Isso me lembrou a época em que eu era um menino e minha mãe me vestia sempre com roupas de bolinhas roxas. Não gostava, me sentia uma hematoma ambulante, mas fingia gostar. Afinal de contas era minha mãe, e mães sempre fazem o melhor que podem por seus filhos. Né? A menina era loira, tinha cachos que pareciam ser de ouro puro, e muito brilhantes. Presos delicadamente por uma travessa de com adorno florido. Tinha que ser, né? Tudo isso combinado a um rostinho angelical, faria qualquer pessoa se apaixonar na hora – o qu foi o meu caso. Ela era linda. A mais bela mocinha que já vi.

- Tô esperando meu busão – disse sem olhar pra ela, como se falasse sozinho. - Como é seu nome?

A respondeu veio novamente com um sorriso.

- Sei. Sei. Você não pode falar com estranhos, né? Acho uma coisa boa essa dica da sua mãe.

A menina Assentiu.

- Sou Nodes. Sou policial militar – disse e dei o sorriso mais carinhoso que consegui fazer até hoje. Tentava convencê-la a falar comigo. Mas acho que tinha sido muito bem treinada pela mãe. E eu poderia ser um bandido se passando por um policial, que poderia sequestrá-la e levá-la para casa: para amá-la, abraçá-la e apertá-la, até ela me amar (risos).

Balançou a cabeça para frente e para trás, gesticulando um “olha que bacana, tio”.

- Acho que já pode falar comigo. Já sabe quem eu sou – disse olhando outra vez pra frente, de cabeça baixa. Tentava parecer um pouco triste. Mas só um pouco. Isso sempre convencer as crianças. Elas sentem dó de adultos que choram, fazem a gente parecer indefesos como elas.

Ela balançou a cabeça para direita e para a esquerda, negando.

- Não é assim que funciona, seu bobo – disse me corrigido. A ideia de parecer um pouco triste não tinha funcionado. Mas a ideia de me apresentar e depois achar que isso bastava para fundamentar nossa amizade, de certa forma, foi plantada no coraçãozinho dela, e a convenceu.

Ou não. Logo saberia a verdade.

- Como assim? - perguntei me fazendo de sonso. Acompanhei a ideia de que eu era um bobo mesmo. Isso lhe parecia uma coisa boa, e não perigosa, como um sequestrador de crianças ou de um assassino em série.

- Só por que eu sei seu nome, isso não quer dizer que somos amigos – disse. Era pequena e frágil, mas guando falou, urra!, com sua vozinha de bebe, passava a impressão de ser um adulta. Adulta numa mente de criança.

- Verdade. Você tem toda razão – eu disse. - Mas sou policial, isso me dá um certo crédito que outras pessoas não tem, e me torna uma boa pessoa, um mocinho. Certo?

A resposta surpreendente:
- Hoje em dia, não mais. Tem um monte de policial vagabundo por ai – disse apontando o dedo para cima, pontuando a frase. - É o que minha mãe sempre diz. - Olhou pra mim, olhou pra minha roupa. - Outra coisa, policiais usam aquelas uniformes cor de coco de bebê.

Eu ri alto, foi muito engraçado tais palavras saírem da boca dela. Me encarou, achou que eu era meio doido.

Eu disse:
- Verdade mesmo, Maria – falei usando o primeiro nome que me veio a mente. Era o primeiro nome da minha falecida mãe. - Verdade.

Me olhou, ergueu os ombros, pôs a mão na cintura e disse meio aborrecida:
- Não sou Maria. Não, senhor – a voz dela estava indignada. - Meu nome é Joanna. J-O-A-N-N-A, viu. Com dois enes.

Acho que ela me achou meio burro, além de um grande bobão.

- Poxa, vida. Desculpa, J-O-A-N-N-A: Joanna. Eu achei de verdade que seu nome era maria. Não sei em que estava pensando.

Pareceu aceitar minhas desculpas. Mas era uma menina muito esperta para sua idade. E com certeza, ela manjou minha mentirinha para arrancar seu nome. Mas pareceu não se importar.

- Muito bem, bobão. Aprende rápido. Levei dois dias para soletrar meu nome.

Eu balancei a cabeça afirmando. Depois disse:
- Minha mãe dizia que sou inteligente. – isso era verdade. Quado garoto, eu sempre aprendia as coisas muito facilmente. Fui um garoto muito esperto até minha adolescência, acho que até a quinta série, dai pra frente fiquei burro. E minha mãe tinha notou isso desde cedo. - Mas sou só um pouquinho.

Eu fiquei um pouco triste de verdade dessa vez. Lembrar de minha mãe sempre me doía muito. E lembrar dela quando eu ainda era criança, me fez volta àqueles dias bons, quando ela ainda era viva, quando a dor da perda ainda não existia. Senti meus olhos começarem a lacrimejar. Mas segurei como pude as lagrimas.

A menina pegou no meu braço, tentando me consolar. E disse:
- As mães sempre têm razão. Sempre. Mesmo quando estão erradas. - isso era verdade mesmo. Todo criança que teve a oportunidade de ser criado pela mãe sabe do que ela estava falando. Mães tem um tipo de poder de convencimento natural. Elas dizem “isso aqui é uma pedra”, mesmo sendo um pedaço de pau. E você pergunta “mas porque, mãe, se isso é um pau? Por que é. Simples assim. Por que eu quero. Oras”, ela responde.

- E os pais? - disse puxando conversa. Tinha achado o ponto fraco dela. Mas eu sabia a responta. Ou achava que sabia.

Revirou os olhos, como se a resposta fosse obvia, e disse:
- Eles são uns bobos. Todos eles. Só pensam em trabalho, cerveja e futebol. Mamãe sempre diz isso à amiga dela, a Raimunda. Ela é meio burrinha e mamãe tenta ajudar quando vê que ela vai fazer alguma besteira.

- Que tipo de besteira, Joanna? - dessa vez, eu disse certinho o nome dela: J-O-A-N-N-A. Quando falou imaginei ela ouvindo as duas conversando e Joanna ao lado ouvindo tudo. Meu deus, que coisas medonhas essa criança deve ter ouvida dessas duas loucas?

Sorriu e respondeu.
- Do tipo fazer bebês. - os pés balançavam. E continuou: - Já tem três e não aprende. Poxa que mulher estupida. - Isso deve ter sido copiado da boca da mãe, com certeza absoluta.

Quanto mais eu conversava com ela, fui detectando de onde via sabedoria adulta. Era coisa que tinha aprendido de ouvido da mãe maluca.

Mas para meu alívio, o ônibus dobrou a esquina, olhei e me levantei.

Ufa! Ainda bem, pensei comigo mesmo, não sabia o que dizer sobre isso – mulher sem noção. Fiquei até com um pouco de vergonha alheia, do tipo quando um amigo peida em publico e ri alto, todo mundo olha e ele pergunta “por que você não riu?”. Que mulheres doidas, falando coisas de adulto perto de crianças.

- Tchau, mocinha. Até amanhã.

Não disse nada novamente. Mas acenou um tchau alegre, acompanhado de outro lindo sorriso. Entrei no ônibus e pude ouvir ela dizer alguma coisa que... de alguma forma não pode ter sido real.

Ela disse:
- Sua mãe gostava de lhe chamar de Nildinho. Nodes é apenas seu apelido, seu bobo.

A fitei pela janela até não poder vê-la mais, ainda acenava o tchau. Acabei com a cara cara colada no vidro.

Mas isso não pode ter sido real. Eu estava dentro do ônibus, a porta estava fechada. Várias pessoas conversavam – uma mulher resmungava que ia chegar atrasada, que o patrão era muito chato com horários; outro dizia, maldito dia para o carro quebrar, maldito dia. Entre outros ruídos que unidos faziam um grande zunzunzum. Pode ser que as palavras ditas pela menina tenham sido pura invenção da minha mente. Eu posso ter criado tais lembranças de alguma fora. Mas tenho certeza que não. Todavia não sei explicar como ela falou comigo sem mover os lábios, somente olhava pra mim.
Ela me deu o último sorriso de um doce adeus.

A viagem toda fiquei pensando em como ela poderia ter feito aquilo. Telepatia, ele era um tipo de criança multante? Isso explicaria como ela sabia de coisas tão pessoais. Controle da mente? Isso não era possível. Era um fantasma e podia falar comigo sem mover os lábios de onde quisesse? Senti um certo medo, um arrepio subiu pela minha espinha e atingiu meu pescoço. Eu tremi. Tudo isso me torturou o dia todo. Quase não consegui trabalhar. Eu rezava para o dia acabar. Assim chegaria em casa jantaria e acordaria cedo para vê-la de novo.

Porém, no dia seguinte e nos demais em que precisei ir até aquele ponto de ônibus, eu chegava até mais cedo para encontrar e falar com ela. Eu tinha muitas perguntas a fazer. Mas nunca mais a vi. Aquilo era um pouco estranho. Perguntei por ela, nas lojas ali perto. Se alguém a conhecia ou a mãe dela. Se a tinham visto por ali alguma vez. Não tinha como não tê-la visto. Era uma bela mocinha de cabelos tão loiro que pareciam ser de uma boneca. Mas nada. Não consegui nenhuma resposta. Ninguém nunca a viu. Ela era um fantasma. Ou eu tinha tido uma alucinação maluca.

Não sei. Ela, com o passar do tempo, de alguma forma, lembrou minha mãe. Verdade. Acho que foi minha mente outra vez me pregando peça. Ou foi a saudade das duas.

Não sei.

- Mas foi muito conhecer você, Joanna. E obrigado pela visita.
Um sorriso agradecido surgiu.
- Tchau, Nildinho.




nodes2016.02

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