Deus e Deuses


E o espírito Deus vagava sobre
a face do abismo
Ele era o verbo e o verbo estava com ele



Depois de criar todas as coisas, o espírito de Deus descansou, sentou-se acima dos céus e contemplou a beleza de sua criação. Era tudo maravilhoso. E perfeito. Tudo estava como ele havia planejado.

Mas o seu oposto, o seu negativo, o outro ser que havia sido gerado no momento da criação do universo, não achava isso. Pois estava entediado. Havia assistido todo o espetáculo da criação, e não havia feito nada. Sua participação foi zero. Ele apenas existia, e era a sua função naquela situação. Existir.

Antes de tudo, antes da criação do universo como o conhecemos hoje, não existia nada, apenas o caos reinava. O qual era tudo, mas de uma forma que era impossível distinguir o quê era o quê, até que Deus colocou ordem e criou o universo. Mas para isso ele precisa de um fio negativo, assim como uma lâmpada necessita de um para que a luz se acenda. Este era o seu oposto, o oposto de deus. O seu fio negativo. Essa era sua função: existir.

No entanto ele não estava gostando muito de sua atribuição. E teve uma brilhante ideia: iria destruir o que Deus tinha feito e iria recriá-la à sua maneira. E foi conversar com ele.

Deus ainda estava sobre os céus, olhando maravilhado o que havia criado lá embaixo.

- Senhor, acho que ficou muito bom.

- Também acho isso – Disse deus orgulhoso. Mas não moveu seus olhos da criação. Haviam milhares detalhes a serem vistos, uma mais lindo que o outro. E quanto menor, mas belo. E ele os olharia um a um.

Seu oposto se aproximou da borda onde Deus estava e olhou. Era tanta coisa que levaria uma eternidade só para ver o que estava na terra. Mas algo lhe chamou a atenção e ele viu que Deus, com um sorriso maroto no rosto, estava olhando para a mesma coisa.

- O que é aquilo? - questionou. E apontando para uma criatura em pé sobre duas patas. Parecia muito com um macaco, mas sem pelo e ereto. - Já tem nome?

- Sim. Chame-o de homem - disse todo orgulhoso.

- Hummm – ronronou seu oposto, confirmando que havia entendido. - Para que ele serve?

- Como assim?

- Sei lá. Tipo, todas as coisas, pelo que vejo, tem a sua utilidade. A exemplo disso, posso falar da água. Ela esfria a temperatura da terra e gera vida. É a essência, assim como vossa senhoria. Mas o homem. Apenas está ali parado olhando. Pensando? Ele é capaz de pensar, assim como nós?

- Sim. - Disse Deus sorrindo. E dessa vez olhou seu oposto nos olhos. - Ele é a nossa imagem e semelhança.

- Nossa! Como o senhor e ousado e sapiente! Ninguém seria capaz de fazer tamanha criação e com tanta perfeição – disse com ironia disfarçada de verdade.

- Obrigado.

- Achas que ele é capaz de distinguir o bem do mal, e se é capaz de se esquivar da maldade, não se corrompendo?

- Com toda certeza – disse Deus prontamente, falando com propriedade, pois era o criador da sua criatura, e o conhecia perfeitamente. Em detalhes.

- Achas mesmo que ele o ama e o respeita, assim como nós o fazemos, senhor?– disse seu oposto, falando na terceira pessoa, dessa forma não puxando pra si tal atribuição.

- Sim – disse impassível ao que o outro tentava lhe impor uma, possível, falha.

- Mas e se ele, assim como nós, com livre arbítrio, que suponho que o senhor lhe deu, escolher não lhe amar mais e levantar blasfêmia contra vossa senhoria? Seria terrível, não achas?

Deus não respondeu. Apenas continuou a olhar o mundo lá embaixo. Mas tal questão afrigiu seu coração. Ele achou que seu oposto tinha certa razão, com o livre arbítrio ele poderia fazer o que bem quisesse, inclusive adorar outra coisa, e não adorá-lo e até criar para si um deus de madeira ou barro, ou de qualquer outra coisa, para servi-los, como se fossem de verdade. Como se fossem o Deus criador do céus e da terra.

- Acha mesmo que tal loucura é possível? Que ele um dia não me aceite mais como seu criador? Que...

- Não foi o que eu disse.

- Mas foi o que pensou – disse encarando seu oposto, estudando seu rosto, tentando adivinhar sua resposta. E estava estampada a resposta na face daquele. - Sim – respondeu Deus antes mesmo do outro falar alguma coisa. E não falaria. Ele sabia que Deus sabia a resposta. E que fisgaria a primeira isca.

- Mas pode ser que não, também – disse, inserido lentamente a primeira parte do veneno que tinha planejado. - Entretanto podemos…

- O quê?

Seu oposto parecia pensar se diria ou não o que estava em sua cabeça. E deus se levantou de onde estava e foi até ele, ficou de frente com o outro.

- Diga logo – Deus estava impaciente. E por estarem falando de sua perfeita criação, ele não foi capaz de captar a maldade por trás das palavras de seu oposto. E estava sendo induzido ao erro, suavemente.

- Ok. Podemos Testá-lo – disse após uma longa pausa dramática. E fez outra pausa. E depois de uns segundos, continuou - Isso se o senhor assim o desejar.

E foi dessa forma, com muita malícia, que o Segundo deus responsável pela criação, mesmo que apenas com inércia, iniciou a derroca de tudo que Deus havia criado. Ele iria destruir o universo. Mas se não fosse capaz disso, destruiria o homem, a criação preferida de Deus (seu oposto), a que mais se orgulhava.

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