Não leia isso, garoto, é burrice


João Nivaldo, suado e sujo, vinha do trabalho quando viu o garoto sentado numa calçada em frente a uma igreja velha no centro da cidade. Assim que o viu, parou e o analisou por um tempo. Tentava entender o que o garoto estava fazendo.

Curioso com a situação, Nivaldo notou que o garoto não se movia. Com um livro surrado nas mãos, ele o fitava como se quisesse decorar cada palavra. Seus olhos iam de cima para baixo de cada página. Era um livro muito grosso, denso como uma bíblia. E não havia motivo no mundo que pudesse motivar uma criança a ler uma coisa dessa, Jesus!, pensou Nivaldo. Deve ser castigo. Só pode.

Não se contendo e achando que poderia ensinar uma lição Nivaldo foi até a criança. E diz:

- Quantos anos você tem, garoto?

O menino, de tão concentrado, não pareceu notar sua presença.

Nivaldo, batendo a ponta do pé direito no chão, pigarreando duas vezes, chamando a sua atenção.

- Bom dia, senhor. Desculpe. Como posso ajudá-lo?

Aquele não era um garoto comum. Isso ele percebeu instantaneamente. Pois a maioria dos garotos teria lhe respondido algo bem trivial, um “quié?” ou um “ham?”. Mas esse lhe foi tão cortês que o deixou embasbacado (besta, como dizem no cotidiano). Ainda de olhos arregalados, ele repetiu:

- Quantos anos você tem?

- 12.

- 12 anos. Bastante jovem eu acho.

- Bastante jovem para o que, senhor?

Nivaldo estendeu a mão direita para o garoto, pedindo para que o garoto lhe passasse o livro. Ele não exitou. E entregou o livro ao homem.

- Nossa!, que livro pesado.

Na capa estava escrito – O Senhor dos anéis – em letras muito bem estilizadas. O nome do autor, logo abaixo do título, era para Nivaldo impronunciável. Ele não sabia do que tratava seu conteúdo. Mas deduziu que a quantidade de besteira contida ali deveria ser enorme.

- Acho que você não devia estar lendo isso.

- Por que diz isso, senhor? É um Tolkien – disse o garoto usando uma metonímia, o autor pela sua obra.

Meu deus do céu, pensou Nivaldo. Esse garoto é um lesado mesmo. Aqui está escrito “O senhor dos anéis”, e ele diz que é um Tauquiem. Que seria isso mesmo?

- Por dois motivos. Um, livros são feitos para pessoas idiotas que ficam por ai sentadas lendo um monte de palavras sem sentido para a vida. Pessoas burras. E dois, você é uma criança. E crianças adoram brincar.

- Verdade – concordou o garoto. - Concordo.

Ele quase disse um “mas”, mas o homem o interrompeu. E continuou:

- Há um bilhão de árvores por aí que adorariam se escaladas por um menino da sua idade – disse o homem, gesticulando um grande arco da direita para a esquerda, dando a entender que havia muitas árvores no mundo. Como se o termo puramente analógico “um bilhão” não fosse o suficiente; - há um bilhão de rios por aí que adorariam ser nadados por um menino da sua idade – disse repetindo o mesmo gesto, só que dessa vez em ordem contraria, da direita para a esquerda. - E você aqui sentado, lendo sabe-se lá o quê.

Nivaldo olhou o livro mais um pouco, girando de um lado para o outro, tentando saber para que servia aquilo. Para ele era apenas um peso cheio de letras. Muuuitas letras.

- Entendo.

Outra vez sem dar atenção ao garoto, ele continuou sua suposta lição.

- Perdendo seu valioso tempo de vida. Eu, quando criança, nesta hora do dia estava pelo mundo, me divertindo. Brincando.

- Posso lhe perguntar uma coisa, senhor?

- Claro que pode.

- Mas por favor, não fique zangado comigo, tá?

- Tudo bem. Pergunte o que quiser. Afinal de contas, você já respondeu a várias das minhas perguntas de forma bem respeitosa.

- O senhor já leu algum livro?

- Vários.

- Quais? Lembra de algum?

- Não lembro de nenhum. Mas lembro que eram da escola. Dever de casa, como chamavam antigamente.

- Uma pena.

- Por que diz que é uma pena? Não lembro nem ter gostado deles.

- Para mim, senhor, livros são o mundo todo. Também são outros mundos. Novos e inexplorados. Nos livros posso viajar pelo mundo todo, sem precisar sair do lugar. E fazer uma quantidade inesgotável de amigos.

Nivaldo o olhava com a mesma curiosidade inicial. Mas já tinha uma opinião sobre o garoto, era louco de pedra. Só pode.

- Entendi quando o senhor disse que brincar é bem legal. Principalmente para um criança como eu. Também acho isso. Concordo com o senhor. Mas prefiro ficar aqui sentado lendo, viajando por outros mundos com todos os meus novos amigos.

- Acho que isso, então, deve ser uma questão de gosto. Algumas crianças gostam de brincar por aí. Subindo em árvores, nadando em rios. Se aventurando. Já outras gostam é de ficar lendo isso aí. Deve até haver outras que não gostam nem de uma coisa nem de outra. Ah, deve haver sim. Mas…

- Posso lhe propor uma coisa, senhor? Como se chama mesmo?

- Nivaldo. Me chamo Nivaldo. Proponha.

Nivaldo percebeu que o garoto poderia ser mesmo louco, mas tinha um vocabulário bem extenso, e se expressava muito bem, como um adulto.

- Diga.

- Façamos assim. Vou lhe dar um livro para o senhor ler.

- Não quero.

- Calma. O senhor o lê, O.K? E se não gostar, me diga por quê. Aí se me convencer, nunca mais leio nada. Nunca mais leio coisas como essa aqui. Prometo.

Nivaldo não queria ler nada. Nunca havia lido nenhum livro por vontade própria. Mas concordou com o garoto. Ele leria a droga do livro e não gostaria dele, com certeza.

- Tá, tudo bem. Eu leio. Mas aviso logo que não vou gostar.

O garoto, deu um risinho triste de compreensão e resignação. E disse:

- Espere aí um pouco, tá?. Já volto – disse o garoto. Atravessou a rua, levando consigo o tal livro “Tauquiem”, e entrou numa casa simples, de telhado baixo.

Nivaldo ficou esperando pelo garoto. Ele não demorou muito. Logo surgiu à porta com um livro que parecia muito mais velho que o ele estava lendo. Atravessou a rua, correndo. E já na calçada da velha igreja, onde estava Nivaldo, estendeu o braço com o livro para que ele pegasse. Na capa estava escrito “Febeapá - o festival de besteira que assola o país”, de Stanislaw Ponte Preta.

Que nome estranho, pensou Nivaldo. Não parece ser de um brasileiro. Mas o sobrenome é de um brasileiro. Nossa! Estranho ao extremo, Jesus!

- Não precisa me devolver. Mas se não gostar mesmo, de verdade, deixe em frente à minha casa, que saberei que odiou e nem conseguiu terminar a leitura.

Nivaldo não falou, apenas balançou a cabeça, sinalizando que entendeu.

Com isso, já com o livro em mãos, Nivaldo agradeceu ao garoto pelo livro que não ia gostar de ler e seguiu em direção à sua residência. O garoto voltou para sua casa.

A caminho, ele deu olhada na capa. Era muito vermelha. Em negrito, em letras garrafais, estava escrito “O FESTIVAL DE BESTEIRAS”. E em letras pequenas, logo abaixo das primeiras letras, estava escrito “que assola o país”. O nome do autor estava logo acima, no too da página, em cor branca, negritada mas em letras pequenas. Um homenzinho de terno e gravata, rabiscado de branco, andava com as mãos nos bolsos da calça, enquanto olhava para uma mão gigantesca que o apontava, pairando acima de sua cabeça.

Que livro estranho. Tudo nele era estranho. E talvez tenha sido isso. A cor vermelha demais. O nome deveras estranho. O homenzinho de terno na capa. O autor meio estrangeiro meio brasileiro. Ele nunca soube dizer o que foi. Mas esse livro o conquistou para o lado bom da força. E depois dele, todos eram Maravilhosos. Novos mundos - inexplorados. Novos amigos a serem conhecidos. Novas aventuras. Um universo todo a seu dispor. Em letras.

Nivaldo percebeu, triste, que nem chegou a perguntar o nome do garoto que o apresentou a esse mundo tão maravilhoso. Até tentou voltar para conversar com ele a respeito, mas o garoto havia ido embora com os pais para outra cidade. Lá haveria escolas melhores para ele, uma vizinha ouvira os pais dele dizerem.


Texto por Oliveira, Nilson, 2020.

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